Tem uma pedrinha no meu sapato

Post original: 9 de novembro de 2022 • Escrito por Isabella Gresswell

Tradução por Júlia Livio Amaral • 15 de março de 2023

Flaggy Shore, Co. Clare, Irlanda

Bom dia, pessoal! Gostaria de retornar às origens deste blog com a publicação de hoje e falar sobre quando e como percebi que a medicina não era o que eu havia imaginado. Essas eram as pedrinhas que entravam no meu sapato - no fim, eram tantas que não precisei de mais motivos para sair do caminho. Essa será apenas uma introdução ao assunto - essa publicação daria um livro se eu descrevesse todas as minhas razões por ter tomado a decisão.

Acho que tenho adiado escrever este post em particular. Um pouco inesperado, não é mesmo? Considerando que esse blog é sobre ter deixado a medicina -  é claro que eu estaria explicando os motivos. Mas já faz mais de um ano que larguei a medicina, e escrever sobre esse assunto significa revisitar tudo aquilo que me fez sentir infeliz, incomodada, com raiva e desapontada, enquanto estava na faculdade de medicina e trabalhando no hospital. Esses são sentimentos que gostaria de deixar para trás.

No entanto, essa publicação é importante porque descobri que ler e ouvir outros médicos descreverem experiências semelhantes tem sido válido. Não sou a única médica desiludida por aqui e meus sentimentos não são raros - que alívio!

Dessa forma, suponho que devo continuar!

Acredito que eu possa ter encontrado uma médica desiludida na minha primeira experiência na enfermaria como estudante. Estava no meu ano pré-medicina e o módulo se chamava “Contato inicial com o paciente”. Estava tentando me mostrar o mais corajosa possível, equipada com os subtítulos do histórico do paciente em um pedaço de papel. Estava indo conversar com um paciente de verdade, pela primeira vez, para fazer seu histórico- graças a Deus estávamos indo em pares! 

Eu suspeito que a médica que estava nos direcionando era uma interna, mas não tenho certeza. Sua introdução basicamente consistia em seu nome e “Corra! Enquanto você ainda pode.” Obviamente, não consigo lembrar as palavras exatas, mas lembro que rimos sobre isso depois - como aquela médica poderia odiar seu trabalho? - que absurdo!

Naquela época, eu colocava A Medicina em um pedestal. Talvez eu teria que ver um pouco de sangue e osso, mas não havia desvantagens reais na carreira! Honestamente, eu era tão ingênua que não conseguia me simpatizar com aquela médica…  É desnecessário dizer que não dei atenção ao aviso.

Foi apenas no meu 4º ano (primeiro ano do ciclo clínico) que comecei a perceber como seria a vida de um médico. Estava estagiando em pediatria e era minha primeira vez no plantão da noite…até às 22h. Estava seguindo o médico registrado de plantão. Era o seu último mês em Letterkenny, Donegal; no mês seguinte, ele se mudaria para um hospital em Dublin.- Que maravilha! Um hospital da cidade grande; que ótima oportunidade!- Ele me disse que tinha família e que eles haviam acabado de se estabelecerem em Letterkenny, portanto, não poderia deslocá-los novamente. Seu plano era voltar aos finais de semana - os quais não estivesse trabalhando. Ele não estava feliz com isso, mas era o que era; não havia nada o que se fazer.

Agora, não estou de brincadeira, eu já havia estudado quatro anos, e essa foi a primeira vez que ouvi falar de médicos sendo transferidos pelo país em suas rotatividades clínicas.  Honestamente, antes disso, pensei que os médicos aplicavam para trabalhar nos hospitais que desejassem trabalhar, nas cidades que desejassem morar. Obviamente, não achei que sempre conseguiríamos nossa primeira escolha, mas “eles estão desesperados por médicos, você conseguirá trabalho em qualquer lugar” era o que eu escutava o tempo inteiro. Bem… acontece que você pode ser classificado nos locais de sua preferência, porém, enquanto você é recém-formado (no caso daqui, faz referência a todos os profissionais com títulos abaixo do de consultor) na Irlanda, você será transferido entre hospitais, cidades e condados a cada 4-6 meses.

Isso foi um choque. Sempre quis uma família e minha própria casa - o que essa instabilidade significaria para os meus planos pessoais!? Eu estava indignada - por que ninguém nos diz isso antes!? Por que se supõe que sabemos disso a partir do momento das nossas aplicações para faculdades de medicina aos 17 anos de idade?

Talvez se você vem de uma família de médicos, você possa ser esclarecido quanto a isso, mas quanto a nós, como saberíamos se não nos dissessem? Por que pensaríamos em pesquisar isso? Por que presumimos que não funciona como os outros trabalhos: você mora nessa cidade, então você aplica para um trabalho nessa cidade e nas cidades vizinhas. Você consegue um trabalho e segue sua carreira. Talvez você saia em busca de novas experiências em outro lugar ou talvez fique aqui com sua família, indefinitivamente. Não. Quatro anos se passaram e só então minha ficha caiu.

Avancei alguns semestres; Estava estagiando em obstetrícia e ginecologia. Estava com meu consultor dando uma checada nos pacientes antes de irmos para a sala de cirurgia. Encontramos uma das médicas registradoras de ginecologia e obstetrícia no corredor e o consultor parou para perguntá-la sobre seu trabalho de pesquisa. O conselho dele foi que ela deixasse seu bebê de 6 meses com seu marido até que ela terminasse de escrever seu trabalho. Ele disse isso na maior naturalidade, como se fosse a coisa mais óbvia a se fazer. Ela apenas acenou com a cabeça concordando - Essa reação da médica registradora é familiar. Não é assim que 99,9% de nós reagimos aos consultores? Não queremos discordar deles e perder seu favor. Afinal, eles sabem melhor que nós, não é mesmo?

O consultor também tinha um bebê a caminho…

Essa interação partiu meu coração. Como isso poderia ser a norma? Como se pode esperar que um pai ou uma mãe priorize um trabalho de pesquisa ao invés do seu bebê? Como uma mãe pode ser aconselhada por um estranho a entregar o cuidado de seu bebê ao pai? Não sei quantas horas ela ainda precisava para terminar aquela pesquisa, mas seja qual fosse esse tempo, tenho certeza que não seria aproveitado no horário de trabalho. A maior parte da pesquisa seria feita durante seu tempo livre, e sua licença maternidade havia acabado, ou seja, seu tempo com seu filho já estaria limitado.

Esses são apenas alguns casos que representam a realidade de se trabalhar na área da saúde; apenas algumas abdicações que se espera que esses profissionais façam em suas vidas pessoais em prol de suas carreiras. Esses exemplos me marcaram porque sempre quis uma família e uma casa própria. Eu tinha toda a intenção de me tornar uma boa médica e queria buscar uma vida de aprendizado, mas não achava que isso custaria tanto aos meus objetivos da vida pessoal.

Claro que é possível conciliar a carreira médica e a construção de uma família, mas não há como negar que a instabilidade geográfica e uma cultura de trabalho em que ‘seu trabalho vem primeiro’ vão ter consequências negativas na sua vida pessoal, nos seus planos, objetivos, nas suas perspectivas. Os profissionais de saúde fazem concessões e se adaptam a esse estilo de vida todos os dias, no entanto, esse não é o estilo de vida que eu quero. Tenho prioridades diferentes. Sou grata por ter descoberto isso agora.

Meu namorado é um engenheiro de software. Ele foi contactado por um recrutador de uma empresa que enfatizou que “o seu trabalho é um trabalho”. Eles respeitavam o tempo livre de seus funcionários, assim como também esperavam que os mesmos  respeitassem seu próprio tempo. Infelizmente eles não estavam procurando recrutar médico no local.

Lembrem-se de se cuidarem também.

Isabella



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